A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
NO BANCO DOS RÉUS
Será que a inteligência artificial colocará em risco o papel dos advogados e juízes? Ou seria uma alternativa para auxiliar o trabalho de nossos magistrados? Conheça aqui a opinião de um dos nomes mais respeitados dentro dessa seara digital.
Inteligência artificial é um assunto que está em voga em todos os setores profissionais, e não poderia ser diferente dentro do direito. Hoje, é tema de conversa em todos os corredores da Justiça, e há quem ainda sinta medo ou crie resistência. Porém, a IA vem sendo uma coadjuvante para ajudar no dia a dia profissional, inclusive oferecendo ferramentas cada vez mais acessíveis.
Para trazer luz sobre essa questão, nesta edição eu converso com um dos maiores especialistas em direito digital no Brasil, o advogado Walter Capanema. Entre suas muitas atribuições, é coordenador da pós-graduação em direito digital na Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (FEMPERJ) e vice-presidente da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB/RJ. Vamos, então, conhecer o que ele tem a dizer sobre a ainda controversa inteligência artificial.
Uma grande preocupação hoje dos jovens que pensam em ingressar na carreira da advocacia é a presença da IA no Judiciário. Será que ainda teremos advogados no futuro?
Quando as pessoas falam de IA, pensam naqueles filmes de ficção científica, em que uma inteligência artificial vai nos destruir. Espero que isso não aconteça. Mas o que vejo é que a IA está afetando vários ramos dos negócios. Especificamente em relação ao direito, podemos imaginar que diversas funções vão desaparecer, principalmente aquelas que são meramente repetitivas, como conferir documentos ou fazer um resumo deles. Essas, talvez, vão ser delegadas à IA. E já existem alguns especialistas, sobretudo na Inglaterra, dizendo que é possível que a quantidade de advogados no mundo diminua, e esses vão cuidar mais de atividades complexas que dependam de um sentimento humano.
Então, no direito, o que podemos dizer que ainda é ficção e o que já é realidade?
A ficção estaria no que pode ser chamado de IA geral, que é a capacidade de se comportar como ser humano em várias atividades. O que temos até agora é uma IA específica. Ou seja, ela pensa como um ser humano em atividades específicas. No direito, vejo isso em duas situações: na criação e revisão de documentos e petições, o que acho interessante, e na análise de documentos, o que me parece mais importante. Isso porque os processos estão cada vez maiores. Imagine receber um PDF com centenas de páginas, e aí você usa a IA não só para resumir esse documento mas também para “traduzi-lo”. Por exemplo, se for um processo em que haja um laudo complicadíssimo sobre uma questão de saúde, só quem vai entender é o perito. Então, você pode falar para a IA: “Traduza esse documento e, se puder, faça uma analogia com algo do direito”. Eu vejo isso como uma grande contribuição.
Como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) encara a utilização da IA nas sentenças judiciais?
Quanto a isso, o CNJ passou por dois grandes momentos. Uns cinco anos atrás, baixou uma resolução que estabelecia o uso da IA no Judiciário. Mas, nessa época, ainda não existia o ChatGPT. Agora, em março, o CNJ trouxe uma nova resolução estabelecendo o uso da IA pelos juízes, no que se refere às ferramentas da IA generativa, ou seja, capazes de gerar conteúdo. É uma resolução bem complexa, com mais de 40 artigos e situações em que os juízes não podem usar, e outras em que eles podem, mas precisam de um parecer técnico antes para avaliar o impacto. E também há situações mais simples, em que eles poderiam usar abertamente.
Há várias opções de aplicativos no mercado. Como escolher aqueles que seriam mais confiáveis?
Hoje, é difícil indicar qual é a melhor, porque as IAs estão avançando dia após dia. Mas, para saber se uma IA é boa para você, sugiro fazer um teste de acurácia. Você coloca o seu prompt (tanto com uma questão complicada quanto com outra mais simples) e verifica se a resposta atende ao seu comando. Se vier uma resposta maluca, já saberá que essa IA não é boa para você.
Recentemente, fiquei sabendo que a IA utilizada por um aplicativo de transporte urbano está detectando o percentual de bateria do celular do usuário, e se tiver menos de 10%, a tarifa fica mais alta. Legalmente, pode-se fazer isso?
Podemos entender que é uma violação do Código de Defesa do Consumidor, porque a alteração do preço se utiliza de uma fragilidade do consumidor, que nem tem a noção disso. Outro exemplo seria uma mulher pedindo um carro, estando à noite numa área pouco movimentada e com apenas 5% de bateria. O app sabe dessa situação e manda uma proposta de valor alto para a corrida, e, muito provavelmente, ela não vai resistir. Então, a empresa utiliza os vários dados que captou daquele passageiro, mas ninguém lê os termos de privacidade. Essas empresas nos perfilam e, a partir daí, decidem contra a gente.
Isso é complicado… Teria algum outro caso semelhante que pudesse contar?
Existe um caso paradigmático para nós, advogados. Uma grande cadeia de lojas nos Estados Unidos contratou um cientista de dados para analisar os dados dos seus clientes. Um certo dia, apareceu numa das lojas um pai muito irado, reclamando que a filha dele, pré-adolescente e que jamais havia namorado, estava recebendo daquela rede cupons de desconto em produtos para gestantes e bebês. Dois dias depois, esse pai ligou para a loja pedindo desculpas, porque a filha estava grávida e ele não sabia. E aí vem a pergunta: como é que a loja descobriu isso? Essa é uma questão muito mais complexa do que possamos imaginar. Todos os nossos comportamentos, hoje, são perfilados pela IA, e é com base em nosso perfil que produtos e serviços nos são oferecidos.
Isso me remete à questão da segurança do usuário na internet. Que tipo de cuidados devemos ter, principalmente quando usamos a inteligência artificial?
Especificamente em relação à IA, é capaz de você começar a usar e se empolgar, querendo colocar tudo ali. Segure um pouco a empolgação! Recomendo que evite inserir documentos pessoais, senhas e qualquer outra coisa mais sigilosa da sua vida. Isso porque algumas dessas IAs, muito embora prometam não fazer isso, acabam usando os seus dados para alimentar a sua base de dados. Uma sugestão é que você tenha um e-mail apenas para cadastros. Assim, quando for se cadastrar em sites, coloque este. Preserve o seu e-mail pessoal para os seus contatos pessoais.
“A IA está afetando vários ramos dos negócios hoje em dia. Em relação ao direito, podemos imaginar que várias funções vão desaparecer, principalmente aquelas que são meramente repetitivas, como conferir documentos ou fazer um resumo deles. Essas, talvez, vão ser delegadas à IA.”
Walter Capanema, advogado.
Sergio Maciel é vice-presidente da Revista Manchete, bacharel em direito, especializado em relações institucionais e governamentais.